O problema da
adaptação de textos literários é praticamente tão antigo quanto o cinema. Se
este nasceu dividido entre o documental e a fantasia, logo se colocou a questão
ficcional como meta possível. Afinal, a “necessidade narrativa” parece uma
pulsão humana que remonta aos primórdios da espécie quando as pessoas se
reuniam em volta da fogueira para que alguém lhes contasse uma história.
Assim, nada mais
natural que o cinema aplicasse seu potencial narrativo e se apropriasse de
histórias já contadas. Isto é, consagradas pelo cânone de artes muito mais
antigas, a literatura ou o teatro. Com muitos percalços, pois o raciocínio
imediato – transpor uma história já pronta para tela – não leva em conta o
essencial. Isto é, que literatura e cinema são dois modos de expressão
diferentes, senão opostos. Num romance, não é tanto a “historinha” o mais
importante, mas a maneira como é contada. Isto é, quais as metáforas, o tipo de
narração, em primeira pessoa ou terceira, em estilo indireto livre, o uso
pessoal do vocabulário, etc. Isto é, o estilo pessoal que modifica, a seu modo,
os recursos da língua. No cinema, esses estilos são de ordem audiovisual –
fotografia, movimento de câmera, uso da música e da trilha sonora, direção de
atores, etc., os elementos de construção que conformam um estilo.
Ou seja, quando se
leva uma obra ao cinema está se fazendo menos uma adaptação do que uma
verdadeira transposição de um meio a outro. É como se o filme negasse o livro
para melhor encontrar sua tradução para este outro meio.
Observação que
permite colocar o problema mais agudo das adaptações de obras literárias – a
tal da fidelidade. Sempre existiu a preocupação em não “trair” a fonte
literária original. Como se o diretor pagasse um tributo ao autor do livro e
não quisesse decepcioná-lo com uma obra que não fizesse jus à sua fonte. E
talvez essa preocupação tenha sido a principal razão de maus filmes baseados em
livros ótimos e consagrados. Os casos mais flagrantes podem ser buscados na
França dos anos 40 e 50, com suas adaptações de obras de prestígio como Madame
Bovary, de Flaubert, ou O Diabo no Corpo, de Radiguet, procuraram ser tão intensamente
“fiéis” que acabaram por desfigurar as obras de origem.
Assim como é fácil
encontrar exemplos de obras-primas muito bem transpostas para a linguagem do
cinema. Para ficar na seara doméstica, podemos pensar em Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, que Nelson Pereira dos Santos transformou num dos títulos
mais notáveis do Cinema Novo. Como? Incorporando na fotografia, na montagem e
trabalho com o som a secura do ambiente e da vida que oprime a família
migrante. Não interessava a Nelson captar a literalidade da trama, mas o
espírito mais fundo da obra de Graciliano.
Cenas do filme Vidas Secas
Outra obra-prima da literatura brasileira, Memórias Póstumas de Brás Cubas, fornece bom tema para análise, pois foi adaptada por dois diretores de tendência muito diversa – Julio Bressane e André Klotzel. O primeiro, de 1985, chamou-se Brás Cubas; o segundo, de 2001, tem por título Memórias Póstumas. Dividem ao meio até mesmo o título original do romance. Klotzel é mais literal; Bressane inventa a partir da obra. Para um romance de ruptura, para sua época, com procedimentos literários surpreendentes, a opção de Bressane parece mais fiel, pois se atém ao espírito da obra. Klotzel prestou mais atenção ao conteúdo, enquanto Bressane buscou a forma e reinventou-a na tela numa opção mais autoral.
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